Uma noite com Secos & Molhados

Marcelo Pinheiro
5 min readDec 18, 2020

--

Rompido com Ney Matogrosso há décadas, João Ricardo, mentor e compositor dos Secos & Molhados, se apresenta em São Paulo com o clássico repertório do álbum de estreia do grupo, que vendeu quase um milhão de cópias e superou até mesmo o rei Roberto Carlos

Os Secos & Molhados em clique histórico de Fernando Seixas. Foto: Reprodução / Facebook

por Marcelo Pinheiro (março de 2012*)

Filho do poeta e jornalista português João Apolinário, João Ricardo Carneiro Teixeira Pinto deixou a vida pacata em Arcozelo, no Porto, e cruzou o Atlântico aos 14 anos, fugindo do salazarismo. Estavam com os dias de liberdade contados: o pai como inimigo político, o filho com a perspectiva de servir ao exército do ditador.

Ironicamente, chegaram ao Brasil, João, o pai, a irmã e a mãe, três dias antes do Golpe de 1964. Em 1966, João Ricardo iniciou uma promissora carreira jornalística. Dois anos mais tarde, abandonou o emprego estável na TV Globo para se dedicar à música. Mal suspeitava de que suas canções tomariam de assalto ouvidos e bocas de milhões de brasileiros com o sucesso dos Secos & Molhados.

Capitaneado pelo filho, João Ricardo, o grupo inspirado pela poética de João Apolinário bateu recordes ao unir uma música de qualidade a elementos inusitados para um Brasil tão conservador, como a maquiagem carregada, as roupas e acessórios extravagantes e a figura andrógina e lasciva de seu vocalista.

A despeito do enorme sucesso, divergências estéticas levaram a parceria entre Ney e João Ricardo a um breve fim. É o que defende ele, hoje, aos 62 anos, classificando como “mentiras absurdas” a versão recorrente de que motivos financeiros os levaram à separação.

João ainda deu sobrevida ao grupo em outros três álbuns e seguiu sozinho, lançando nove títulos, o mais recente Chato-Boy, de 2011. Em 29 de março, ao lado do violonista Daniel Iasbeck, João se apresentará como Secos & Molhados no Cine Joia, em São Paulo. Na entrevista a seguir, que estreia a seção Diz Aí, João Ricardo fala sobre o despertar da paixão pela música, as escolhas estéticas dos Secos & Molhados, a turbulenta relação com o ex-amigo Ney e os improvisos na criação da célebre capa do álbum de estreia da banda.

Veja uma compilação de raros registros televisivos do Secos & Molhados compilados pelo baterista Nicholas Rugenski em seu canal no YouTube

“Meu pai teve de sair às pressas de Portugal, fugindo do Salazar, pois descobriu que seria preso pelo órgão de inteligência e repressão da ditadura. Também fugi, de certa forma, pois em pouco tempo seria recrutado para lutar na Guerra Colonial. Meu pai foi contratado para trabalhar no Primeira Hora e, na véspera dele ingressar no jornal, no dia 31, veio o Golpe Militar e havíamos saído de Portugal justamente para fugir disso. Eu ainda era muito jovem, tinha a noção exata do que estava acontecendo, mas adorei o Brasil, um país infinitamente maior que Portugal e com pessoas maravilhosas.”

“Eu tinha acabado de conhecer os Beatles na Europa e fiquei horrorizado ao saber que ninguém os conhecia no Brasil. Por influência deles, comecei a tocar violão sozinho e quebrei o violão inteiro, mas aprendi a tocar. Já fazia letras para um vizinho chamado Renato, que compunha muito bem, mas aprendi a tocar e comecei a compor. A maior parte das músicas do primeiro álbum dos Secos & Molhados compus com 16, 17 anos. A única que foi feita três ou quatro meses antes de gravarmos o disco foi Sangue Latino.”

“Meu pai foi editor do Última Hora e aos 16 anos decidi trabalhar lá. Aprendi a fazer jornalismo praticando jornalismo. Trabalhei depois no Diário Popular e fui convidado a ir para a Rede Globo para fazer o Jornal Hoje. Cobria artes e espetáculos e foi uma experiência divisora. Eu me aproximei de um universo que muito me interessava. A música era um mundo paralelo para mim e não tardou até que eu pedisse para me mandarem embora, pois sabia que teria algum dinheiro para ficar um tempo razoável preparando minha carreira. Se não desse certo, voltaria para o jornalismo.”

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

“Qualquer um que analisar com alguma profundidade o que fiz depois dos Secos & Molhados perceberá que não tenho nada a ver com o que o Ney se tornou. Nossa ruptura se deveu muito mais a essas diferenças. Houve mentiras absurdas sobre nossa separação, questões que não me interessam mais, mas a verdade é que nunca fui adepto daquilo que Ney pretendia fazer. Essa coisa estável de tratar a MPB como uma estatal, trabalhar como um burocrata e agir como um funcionário público, fazendo a mesma coisa por 30, 40 anos. Mas também é fato que Ney foi primoroso nos Secos & Molhados. Cantou minhas músicas como ninguém, e nunca ninguém fez isso melhor do que ele. Hoje, somos dois velhinhos e a memória afetiva das pessoas espera que ainda exista algo entre nós, mas não temos mais relações em nenhum nível. Fizemos algo irrepreensível, irretocável e fantástico, mas tudo isso é passado.”

“Tudo foi feito às pressas. Pedi emprestado ao meu cunhado dois cavaletes e um compensado de madeira e saímos correndo para comprar aquelas coisas todas que se vê sob a mesa. Naquela época não existia supermercado 24 horas em São Paulo, mas havia um, chamado Jumbo Eletro, que fechava à meia-noite em frente ao Aeroporto de Congonhas. Recortamos o compensado para poder colocar as cabeças sob a mesa e trabalhamos a noite inteira. O Antônio Carlos Rodrigues era fotógrafo do Última Hora e pedi a ele a gentileza de fazer as fotos da capa. Ele teve essa ideia e ela acabou se tornando uma capa clássica da música brasileira.”

*Reportagem originalmente publicada na edição de março de 2012 da revista Brasileiros

Ouça a íntegra do show apresentado pela banda no Maracanãzinho em 1974

--

--

Marcelo Pinheiro
Marcelo Pinheiro

Written by Marcelo Pinheiro

Acervo de reportagens, entrevistas e perfis

No responses yet