Milton Banana: o Rei do Ritmo na terra dos grandes bateristas
Há 50 anos, com um álbum divisor, o músico carioca debutava em carreira solo e inventava um jeito brasileiríssimo de lidar com as baquetas
por Marcelo Pinheiro (dezembro de 2013*)
Edgar Nunes Rocca, o pioneiro Bituca, Edison Machado, Rubinho Barsotti, Dom Um Romão, Wilson das Neves, Hélcio Milito, Chico Batera, Pascoal Meirelles, Jorge Autuori, Airto Moreira, Toninho Pinheiro, João Palma, Ronald Mesquita, Ivan “Mamão” Conti, Robertinho Silva e tantos outros. Não restam dúvidas: o Brasil dos anos 1960 e 1970 foi prolífico em revelar grandes bateristas. Músicos inventivos e essenciais para reescrever a história do instrumento no País e definir um irresistível jeitinho brasileiro de conduzir pratos, bumbos e tambores. Tradição que teve em Antonio de Souza, ou melhor, Milton Banana, a figura de um desbravador. Acompanhando João Gilberto e Tom Jobim no histórico concerto da bossa nova no Carnegie Hall, Milton fez mais que história. Deu ao instrumento novas possibilidades e estabeleceu um rico diálogo entre as tradições rítmicas do samba e a riqueza técnica do jazz.
Naquela noite de 21 de novembro de 1962, em Nova York, arrebatados pela revelação da beleza harmônica das canções interpretadas por João Gilberto, os músicos presentes na plateia — e não eram poucos — também devem ter dado um nó na cabeça ao descobrir o modo peculiar com que Milton construía sua elegante teia percussiva para o baiano e o jovem maestro Tom. Se a João é atribuída paternidade da batida bossa nova ao violão, o mesmo vale para Milton em relação a seu instrumento, haja vista que, como o baiano, ele propôs um salto de modernidade sem precedentes aos diminutos sets de bateria de herança jazzística. Depois de Milton e esse pessoal da pesada, aos músicos que lidavam com os dois instrumentos e os que depois chegariam, como diria a bela canção de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, nada seria como antes.
Nascido em 1935, no bairro de São Cristovão, zona norte do Rio de Janeiro, aos 20 anos o autodidata Milton Banana (vulgo artístico sugerido por sua mãe, devida a compulsão do menino Antônio de Souza, seu nome de batismo, pela fruta) começou a tocar bateria profissionalmente na orquestra do maestro Waldir Calmon, que se apresentava regularmente em sua boate Arpège. Meses depois, Milton passou a integrar o conjunto dançante da boate Drink, de Djalma Ferreira, também líder do popular Milionários do Ritmo, cujo crooner era o ás do sambalanço, Miltinho.
Se as noites na casa de Djalma, situada na divisa do Leme e Copacabana, na Avenida Princesa Isabel, eram dedicadas à dança, na calçada do lado oposto, no Hotel Plaza, uma espécie de “laboratório” da bossa nova funcionava, à revelia do grande público. No Hotel Plaza, quem dava as cartas regularmente era o grande Johnny Alf; vez ou outra, um jovem visitante armado de seu violão, chamado João Gilberto, dava canja. E foi no after-hour das madrugadas esfumaçadas do Plaza, entre uma escapada e outra da boate de Djalma, que Milton começou a trilhar os caminhos que o levaria à “paternidade” da batida bossa nova na bateria.
No final de 1955, depois de Johnny partir para São Paulo, convidado a liderar o conjunto do novo bar Baiuca, na boemia região central da capital paulista, Milton passou a integrar o conjunto de Luizinho Eça, outro jovem prodígio do piano que, depois de ser laureado por ninguém menos que o presidente Juscelino Kubitscheck, ganhou bolsa de estudos para ir à Europa e foi ter aulas com o maestro dodecafonista H.J. Koellreutter, que, depois, viveu um longo período no Brasil, quando lecionou na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e inspirou jovens talentos como Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ao voltar do Velho Mundo, decidido a abrir mão da formação erudita, Luizinho montou o fundamental Tamba Trio.
O grupo liderado por Luizinho, no Plaza, era da pesadíssima. No contrabaixo, Ed Lincoln, que depois se tornaria célebre em bailes e LPs ao “pilotar” seu órgão Hammond B-3 com doses cavalares de sambalanço; no acordeon, um certo pianista e trombonista acriano chamado João Donato, ex-namorado de Dolores Duran, com quilometragem de sobra em jam-sessions, e um primeiro LP na praça, Chá Dançante; a miúda Claudette Soares, que então tentava fugir do rótulo reducionista de “Princesinha do Baião”, assumiu os vocais do grupo e também encontrou ao lado de Luizinho, Ed, Donato e Milton, novos e frutíferos caminhos no bar do Hotel Plaza.
Habitué do Plaza, João Gilberto passou a ser espécie de referência moderna para o local. Afinal, se o baiano, conhecido na zona sul carioca por estar renovando estatutos musicais, religiosamente frequentava o bar do hotel é porque havia ali pessoas com visão futurista e interessadas no novo — “gente descolada”, como diria a juventude de hoje. O Plaza, organicamente, passou então a aglutinar protagonistas da vanguarda musical carioca daquela última metade dos anos 1950.
Foi lá que, acompanhando João Gilberto e Tom Jobim, Milton Banana abriu caminho para tornar-se referência mundial em seu instrumento. No livro Chega de Saudade, Ruy Castro relembra e defende: “João Gilberto não era o único a estar cozinhando ousadias no Plaza. O baterista Milton Banana recebeu permissão para acompanhá-lo, desde que tocasse bem baixinho. Aos poucos, limitando-se a escovinha em cima do pano e a uma baqueta contra o aro da caixa, Banana conseguiu transpor para a bateria Pingüim a mesma batida do violão”.
E foi, assim, nas madrugadas boêmias do bar do hotel, na base do improviso, e sob o rigor técnico de João, que nasceu a batida bossa nova na bateria. Entre 1958 e 1959, não por acaso, Milton integraria as gravações dos primeiros compactos de João e do marco-zero da bossa, Chega de Saudade.
No início de 1962, depois de experimentar uma temporada argentina com João, Os Cariocas e Badden Powell na boate 686, em Buenos Aires (e despertar enorme admiração no grande Astor Piazzolla, presença constante em seus shows), de volta ao Brasil, Milton integraria as gravações de Muito à Vontade e A Bossa Moderna de João Donato e seu Trio, gravados na mesma sessão e dois clássicos inaugurais da primorosa discografia do pianista.
Ao lado de João Gilberto, Tom e d’Os Cariocas, o baterista participou também de outro momento divisor para a música popular do País, a temporada de shows Um Encontro — Milton fechou a cozinha com o baixista Octavio Bailly Jr, que depois integraria o Bossa Três de Luis Carlos Vinhas, com a saída do primeiro baterista, o grande Edison Machado. Produzido por Aloysio de Oliveira no nightclub Au Bon Gourmet, o show Um Encontro revelou ao Brasil a faceta de cantor do poeta e diplomata Vinicius de Moraes. O espetáculo foi também a primeira e última ocasião em que Tom, João e Vinicius dividiram um mesmo palco.
Se os últimos dias de 1962 foram marcados pelo histórico concerto no Carnegie Hall e uma fossa terrível — Milton namorava, à época, a cantora Elza Soares, que o deixou para ficar com Mané Garrincha, ironicamente, o maior craque do seu time do coração, o Botafogo –, o ano seguinte seria de conquistas ainda maiores para ele.
Além de integrar, em Nova York, as gravações de Getz/Gilberto, LP que tornou a bossa nova cultuada no mundo todo, acompanhando João o baterista fez uma temporada de três meses no Bussoloto, clube anexo à imponente casa de shows La Bussola, na cidade de Vaireggio, no Sul da Itália. A incrível banda de João também integrava Tião Neto (que apesar de vergonhosamente não ter sido creditado, foi o baixista de Getz/Gilberto) e João Donato, que aceitou convite do baiano e partiu com ele, de Nova York para a Itália. Na mesma ocasião em que os brasileiros fizeram sua temporada italiana, o “Rei do Twist”, Chubb Checker, fez vários shows no La Bussola. Reza a lenda, não perdia uma apresentação de João e seu conjunto.
Mas o grande feito de Milton, em 1963, foi mesmo o lançamento de seu primeiro disco solo, O Ritmo e o Som da Bossa Nova. Dando conta da importância do músico, a gravadora Audio Fidelity deu ao álbum o solene subtítulo Apresentando Milton Banana, o Maior Baterista da Bossa Nova, com o conjunto de Oscar Castro Neves.
O álbum é composto de 12 temas instrumentais. A maioria deles standards da bossa nova, como Você e Eu, Desafinado, Samba de Uma Nota Só, Chega de Saudade e Influência do Jazz. Além dessas cinco unanimidades, não menos importantes, outros sete temas: de João Roberto Kelly, Boato; de Pernambuco e Antonio Maria, O Amor e a Rosa; de Dé Rosa e Vera Brasil, O Menino Desce o Morro; de Luiz Bandeira e Luiz Antonio, O Apito no Samba; de Oscar Castro Neves (morto em setembro deste ano, em Los Angeles, vitimado por um câncer), Bossa Nova Blues, Não Faz Assim e Chora Tua Tristeza (esta última, em parceria com Luvercy Fiorini).
Provendo auxílio luxuoso e acabamento requintado ao disco de estreia do baterista, estão os seguintes músicos: Iko Castro Neves (contrabaixo), irmão de Oscar (multi-instrumentista que lidera o conjunto ao piano), Roberto Pontes Dias (percussão) e os americanos Leo Wright (sax alto e flauta) e Henry Percy Wilcox (guitarra).
Lançado pela filial paulistana da Audio Fidelity, sediada na Rua Rego Freitas, no coração da cidade, O Ritmo e o Som da Bossa Nova foi sucedido por uma série de discos gravados em São Paulo com um novo conjunto, o Milton Banana Trio, formado pelo baterista, o pianista Wanderley e o baixista Guará. Entre 1965 e 1979, Milton lançou nada menos que 13 álbuns autorais. Nos anos 1980, voltaria a morar no Rio e lançaria LPs dedicados ao repertório dos amigos Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes. Em 1992, o diabetes levou Milton a desenvolver graves problemas circulatórios. Sete anos mais tarde, em abril de 1999, ele teve parte da perna direita amputada. Mesmo assim, não deixou o instrumento. Em 15 de maio daquele ano, extremamente debilitado e vivendo severas privações financeiras, Milton Banana morreu aos 64 nos, vitimado por um infarto.
Tom Jobim jamais revelou tal fato em vida, mas amigos garantem que foi o maestro quem, por anos, manteve despesas do baterista, incluindo-se aí, o aluguel de seu diminuto apartamento em Copacabana. No velório do baterista, uma coroa de flores se destacava pela dedicatória: “A Milton, a quem o Brasil não homenageou, nem conheceu nunca. Assinado: Todos os músicos do Brasil”. Lógico, a exemplo de Tom ele jamais confirmaria, mas o afetuoso gesto é atribuído ao amigo João Gilberto.
*Originalmente publicado na coluna Quintessência do site da revista Brasileiros em 5 de dezembro de 2013